
Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia é crime?
A sociedade contemporânea vive uma contradição sem precedentes: nunca a informação esteve tão acessível, mas nunca os riscos relacionados à exposição da intimidade foram tão devastadores. A internet, que nasceu como promessa de democratização do conhecimento, transformou-se também em palco de práticas nocivas que desafiam o direito, a moral e a própria dignidade humana. Dentre essas práticas, poucas são tão degradantes quanto a divulgação de cena de estupro ou de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia. Não se trata apenas de uma infração penal, mas de uma chaga social que aprofunda o sofrimento das vítimas e revela a fragilidade dos valores éticos no mundo digital.
É preciso, antes de mais nada, compreender que a divulgação de tais cenas não é um fenômeno novo. O desejo de explorar a intimidade alheia sempre existiu na história da humanidade. No entanto, no passado, esse impulso encontrava barreiras físicas e tecnológicas: dependia de registros limitados, cópias escassas e circulação restrita. Hoje, ao contrário, vivemos uma era em que a reprodução é instantânea, ilimitada e praticamente impossível de ser controlada. Um vídeo compartilhado em uma rede social pode alcançar milhões de pessoas em minutos, espalhando-se por servidores de diversos países, sem fronteiras ou freios. Essa realidade torna o crime de divulgação de cenas de violência sexual ainda mais cruel, pois a vítima não sofre apenas no momento do ato, mas permanece condenada a reviver o trauma indefinidamente, sempre que o conteúdo reaparece.
O Direito Penal brasileiro, ciente dessa gravidade, previu no artigo 218-C do Código Penal a criminalização específica, como segue no link abaixo:
Art. 218-C, CP:
“Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio — inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática — fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável, de cena de sexo, nudez ou pornografia.”
Pena: reclusão, de 1 a 5 anos, se o fato não constitui crime mais grave.
Núcleos do tipo (condutas típicas)
O crime é plurinuclear (várias ações possíveis); Qualquer dessas condutas já caracteriza o delito.
Objeto material
Fotografia, vídeo ou outro registro contendo:
Sujeito ativo
Sujeito passivo
Consumação
Tentativa
Natureza da ação penal
Prisão em flagrante
Fiança
Competência
Cabimento de ANPP (Acordo de Não Persecução Penal – art. 28-A, CPP)
Suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/95)
Medidas cautelares
Além da prisão, podem ser aplicadas medidas do art. 319, CPP, como:
Do ponto de vista jurídico, o crime é autônomo em relação ao estupro ou ao estupro de vulnerável. Isso significa que, mesmo que não seja possível comprovar judicialmente o ato sexual violento, a simples divulgação do material já configura delito. Essa independência é fundamental porque permite proteger a vítima em duas dimensões: a da violência física, que pode ser processada no artigo 213 ou 217-A, e a da violência simbólica, perpetuada pela circulação da cena. O legislador compreendeu que não se trata de mero detalhe, mas de uma segunda camada de violação, tão ou mais dolorosa do que a primeira.
Entretanto, a análise do problema não pode se restringir ao aspecto legal. É preciso refletir sobre o impacto humano da divulgação dessas cenas. A vítima que já sofreu a violência física é submetida a uma segunda agressão, chamada de revitimização. Imagine-se alguém que, contra sua vontade, foi filmado em situação de estupro e, posteriormente, descobre que sua dor se transformou em objeto de curiosidade pública. Essa pessoa não apenas revive o trauma, mas passa a carregar a angústia de ser vista por vizinhos, colegas de trabalho e até familiares em uma posição degradante. A vergonha, que deveria recair sobre o agressor, desloca-se injustamente para a vítima, que muitas vezes se isola, perde o emprego, rompe relações afetivas e desenvolve transtornos psicológicos graves como depressão, ansiedade ou tendências suicidas. A violência, assim, não termina nunca: renova-se a cada clique, a cada compartilhamento, a cada visualização.
Não se pode ignorar que a internet potencializou o que sempre existiu na natureza humana: o voyeurismo, a curiosidade mórbida pelo sofrimento do outro. Se no passado multidões se reuniam para assistir a execuções públicas ou combates sangrentos, hoje milhões de pessoas se aglomeram virtualmente para consumir cenas de sexo não consentido. Esse comportamento revela uma crise ética: a incapacidade de reconhecer que, por trás do vídeo, há uma pessoa que sente, sofre e terá sua vida marcada para sempre. O consumidor de tais conteúdos, ainda que não perceba, torna-se cúmplice da violência, pois sua curiosidade alimenta a engrenagem criminosa. Sem demanda, não haveria oferta. Mas a cada clique, a cada curtida, a cada repasse, reforça-se a lógica de que a dor do outro pode ser mercadoria.
A responsabilidade, contudo, não recai apenas sobre indivíduos isolados. As plataformas digitais têm papel central nesse fenômeno. São elas que oferecem os meios técnicos para a circulação e, muitas vezes, lucram com o tráfego gerado, ainda que indiretamente. É verdade que não se pode exigir controle absoluto de todo o conteúdo publicado, mas é igualmente verdade que empresas bilionárias têm capacidade de desenvolver ferramentas mais eficazes para detectar e bloquear material ilícito. O Marco Civil da Internet já prevê a responsabilidade subsidiária dos provedores que se recusam a cumprir ordens judiciais de remoção. Mas talvez seja necessário avançar mais, impondo a obrigação de monitoramento ativo em casos de conteúdo manifestamente criminoso, como cenas de estupro. A liberdade de expressão, valor fundamental, não pode ser confundida com licença para degradar a dignidade humana.
É interessante observar como a legislação evoluiu diante das demandas sociais. Durante muito tempo, o ordenamento jurídico brasileiro limitou-se a punir crimes sexuais praticados fisicamente, sem atentar para a dimensão digital da violência. Foi apenas com a pressão de movimentos sociais, sobretudo em razão do chamado revenge porn, que o Congresso Nacional aprovou a Lei 13.718/2018, incluindo o artigo 218-C. Esse avanço demonstra que o Direito responde às transformações sociais, mas também revela que ele caminha atrás dos fatos. A tecnologia avança em ritmo acelerado, enquanto a legislação corre para tentar acompanhar. Essa defasagem cria lacunas que acabam sendo exploradas por criminosos.
Um dos maiores desafios, nesse contexto, é a permanência do conteúdo na rede. Ainda que haja decisões judiciais determinando a remoção, a lógica viral da internet faz com que o material seja replicado em dezenas de plataformas, muitas vezes hospedadas em países com legislações mais permissivas. A vítima, então, descobre que sua imagem circula fora de seu controle e que nem mesmo o Estado tem meios de garantir a exclusão definitiva. Essa impotência gera sensação de desamparo, como se houvesse uma condenação perpétua. A justiça, que deveria trazer alívio, acaba sendo incapaz de restaurar plenamente a dignidade perdida.
Por isso, a solução não pode se restringir à esfera punitiva. É preciso investir em educação digital, para que as novas gerações compreendam a gravidade do compartilhamento de conteúdos íntimos. Muitos adolescentes, por ignorância ou imaturidade, acabam repassando vídeos de estupro ou pornografia sem perceber que estão cometendo crime grave. Campanhas educativas nas escolas, nas redes sociais e nos meios de comunicação poderiam alertar sobre os danos irreparáveis dessa prática, estimulando a empatia e o respeito. Ao mesmo tempo, é necessário oferecer apoio psicológico e jurídico às vítimas, para que não enfrentem sozinhas a dor da exposição. A sociedade, nesse sentido, precisa desenvolver uma cultura de acolhimento em vez de julgamento.
Do ponto de vista ético, o combate à divulgação de cenas de estupro é um imperativo civilizatório. Não se trata apenas de proteger indivíduos isolados, mas de reafirmar valores coletivos. Uma comunidade que tolera a exposição da dor alheia em nome do entretenimento caminha para a barbárie. A dignidade sexual é um dos pilares da convivência humana, pois toca diretamente na liberdade, na integridade e na honra das pessoas. Quando ela é violada, toda a sociedade se degrada. Defender o respeito à intimidade e combater a pornografia não consentida é, portanto, mais do que aplicar a lei: é preservar a própria essência da humanidade.
É necessário reconhecer, também, que há um componente cultural enraizado nesse problema. A objetificação do corpo, sobretudo o feminino, foi historicamente naturalizada. Durante séculos, mulheres foram vistas como propriedades, como instrumentos de prazer, sem autonomia sobre sua sexualidade. Essa herança patriarcal ainda se manifesta hoje, na forma como muitos homens se sentem autorizados a expor e compartilhar cenas íntimas sem o consentimento da parceira. Combater a divulgação de cenas de estupro, portanto, exige enfrentar essa mentalidade machista, reafirmando que ninguém tem o direito de dispor do corpo ou da imagem do outro.
Não se pode esquecer, ademais, das vítimas vulneráveis, como crianças e adolescentes. Nestes casos, a gravidade se multiplica, pois além da violência sexual há a exploração da inocência. A circulação de pornografia infantil é crime gravíssimo e deve ser combatida com todos os recursos do Estado. Infelizmente, ainda há redes subterrâneas que se alimentam desse conteúdo, muitas vezes protegido por sistemas de criptografia. É urgente que haja cooperação internacional, para que criminosos não se escondam atrás de fronteiras digitais. A luta contra a divulgação de cenas de estupro de vulnerável deve ser prioridade absoluta, pois está em jogo o futuro de seres humanos em formação.
Dito isso, conclui-se que a tarefa é árdua, mas absolutamente necessária. Como advertia Rui Barbosa, a justiça não pode se limitar à aplicação mecânica da lei, mas deve ser expressão de humanidade. E ser humano, nesse contexto, significa rechaçar a banalização da violência sexual e empenhar-se para que nenhuma vítima seja condenada a conviver eternamente com a exposição de sua dor. Defender a dignidade sexual é defender a própria civilização, pois não há sociedade verdadeiramente livre enquanto seres humanos forem reduzidos a meros objetos em vídeos divulgados sem consentimento. O combate à propagação dessas cenas é, portanto, um dever moral, jurídico e social. Contudo, é igualmente essencial que se reconheça que nem todo investigado é culpado, sendo imprescindível garantir-lhe ampla defesa, presunção de inocência e o devido processo legal. Apenas pela ponderação equilibrada entre os direitos da vítima e as garantias do acusado será possível alcançar uma sociedade em que todos possam respeitar e ser respeitados, em verdadeira harmonia com os princípios constitucionais. Sem Advogado Criminal Especialista em Crimes Sexuais não se faz Justiça.