Advogado Especialista em Crime Sexual

Advogado Especialista em crime sexual analisa a decisão do STJ que em Revisão Criminal absolveu acusado de estupro

Advogado Especialista em crime sexual analisa a decisão do STJ que em Revisão Criminal absolveu acusado de estupro

1) Panorama do caso e por que o julgamento importa

A 3ª Seção do STJ, por apertada maioria (5×4), julgou procedente revisão criminal fundada no art. 621, III, do CPP, reconhecendo dúvida razoável diante das retratações de duas, entre três, supostas vítimas e das contradições que permeavam o processo desde a investigação. O resultado foi a absolvição do condenado pelos delitos de estupro e estupro de vulnerável. A informação foi veiculada por veículos jurídicos e acompanhou o voto divergente vencedor do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que enfatizou a existência de versões inconsistentes, ausência de prova independente de corroboração e um histórico de id idas e vindas nas narrativas, tudo apto a instaurar dúvida razoável incompatível com a manutenção da condenação.

Para a defesa, o caso sempre repousou essencialmente na palavra das vítimas — que, além de oscilante, terminou retratada por duas delas, formalmente (justificação judicial) e por ata notarial, reforçando a tese de erro judiciário e autorizando a via revisional. O relator, Min. Rogério Schietti Cruz, ficou vencido ao sustentar que, embora a retratação seja um dado relevante, não bastaria para, por si só, rescindir o julgado, especialmente porque o processo contaria com outros elementos (p.ex., relatos sobre supostas ameaças). A maioria, porém, entendeu que — em sede de revisão — basta a dúvida razoável quando a condenação não resiste ao cotejo entre as versões e à prova nova surgida após o trânsito em julgado.

Não se trata de ruptura com a jurisprudência: o STJ há anos admite a retratação como prova nova (quando validamente obtida) para fins do art. 621, III, sobretudo em crimes sexuais nos quais a condenação repousa exclusivamente no depoimento da vítima, sem elementos autônomos de corroboração. Essa linha está registrada em materiais institucionais do próprio STJ e em compilações didáticas sobre revisão criminal. (STJ)


2) O que é “prova nova” no art. 621, III, do CPP — e por que a retratação pode preencher esse requisito

O art. 621, III, do CPP prevê a revisão quando, após a condenação, surgirem novas provas de inocência. A jurisprudência tem explicado que não basta mera revaloração de provas antigas; exige-se elemento novo, inexistente e inacessível ao tempo do julgamento, idôneo para alterar o desfecho. Em delitos sexuais, a retratação pode cumprir esse papel se:

  1. surge depois do trânsito;
  2. é formalizada por meio adequado (p.ex., justificação judicial com contraditório), ou se outro instrumento (p.ex., ata notarial) é acompanhado de elementos que credenciem sua fidedignidade;
  3. desmonta a coluna central da condenação (p.ex., quando a sentença se sustentava na palavra das vítimas) ou, ao menos, instaura dúvida razoável. (STJ)

O STJ já sinalizara, inclusive, que a justificação judicial tende a ser via mais adequada para robustecer a retratação, pois agrega contraditório, participa o Ministério Público e permite controle judicial da higidez do ato, diminuindo o risco de manipulações. No caso noticiado, houve uma retratação por justificação e outra por ata notarial, cenário que a maioria reputou suficiente para reintroduzir a dúvida ante um acervo já marcado por versões vacilantes e ausência de prova independente. (STJ)


3) Palavra da vítima: sim, tem valor — mas não é absoluta nem imune à revisão

É pacífico reconhecer especial relevo à palavra da vítima em crimes sexuais, dados sua clandestinidade e dinâmica de difícil prova. Contudo, o mesmo sistema que valoriza a narrativa também admite revisão quando a mesma testemunha-chave se retrata e quando não há outros pilares probatórios. Não é contradição; é coerência com o modelo de livre convencimento motivado e com o padrão probatório penal:

  • Condenar exige certeza para além de dúvida razoável;
  • Absolver em revisão demanda dúvida relevante demonstrada por prova nova que corrói o juízo condenatório.

Materiais oficiais do STJ já haviam sistematizado esse ponto de equilíbrio: retratação pode, em tese, embasar revisão quando o conjunto original era frágil, limitado à palavra da vítima sem suporte externo, e a nova prova reconfigura a credibilidade do conjunto. (STJ)


4) O voto vencedor: contradições, arquivamento inicial e ausência de corroboração

A divergência vitoriosa, do Min. Reynaldo Soares da Fonseca, realçou três eixos:

(i) Histórico de inconsistências: desde o inquérito, as versões oscilaram quanto a fatos essenciais (tempo, modo e lugar), fragilizando a confiabilidade do quadro probatório.

(ii) Atuação ministerial pretérita: houve pedido de arquivamento por inexistência de justa causa — indicativo de que havia fragilidade na gênese do caso.

(iii) Retratações: duas vítimas afirmaram não terem sido abusadas e disseram que mentiram, influenciadas por terceira pessoa; a prova nova somou-se a um acervo inconfiável, tornando temerária a manutenção da condenação.

Esse encadeamento sustenta um raciocínio caro ao processo penal: em dúvida, absolve-se — tanto no mérito quanto na revisão quando emergem fatos supervenientes que restringem a força persuasiva do acervo anterior.


5) O voto vencido: limites à força da retratação e o risco de “instabilidade” das condenações

O Min. Schietti defendeu a improcedência da revisão, ponderando que:

  • Retratações logo após o trânsito em julgado merecem cautela;
  • O sistema precisa evitar que condenações se tornem instáveis por mudanças de ânimo;
  • O processo teria outros elementos (p.ex., relatos de ameaças, medo das vítimas), e a mera troca de versões poderia não bastar para rescindir o julgado.

É um argumento recorrente: a retratação, por si, não é “passe livre” para absolvição. Precisa dialogar criticamente com o acervo anterior e convencer de que a condenação não resistiria ao novo quadro. A maioria considerou convencido esse ponto.


6) Revisão criminal não é “novo recurso”: requisitos e ônus argumentativo

Vale reafirmar: revisão criminal não refaz a instrução nem funciona como “terceira instância”. Ela exige um dos pressupostos do art. 621 (erro na aplicação da lei, contrariedade às provas dos autos, ou prova nova de inocência/causa de diminuição), com ônus argumentativo forte do requerente. Guias e compilações recentes lembram que a prova nova deve ser robusta e potente para mudar o resultado — não é mera esperança de convencimento. (JusDocs)

A linha institucional do STJ acrescenta: retratação ou justificação pode ser “nova prova”, depende da forma de colheita, do lastro de credibilidade e de sua capacidade de abalroar a sentença. (STJ)


7) Estratégia defensiva: como tratar a retratação para que seja “prova nova” idônea

Para quem atua na defesa em crimes sexuais, alguns passos práticos potencializam a força da retratação:

  1. Escolha do rito: priorizar justificação judicial, com participação do MP e do juízo, permite contraditório e controle de autenticidade, reduzindo alegações de “armação” ou “pressão” sobre a vítima. Ata notarial pode ser complementar, mas o ideal é cercar-se de atos jurisdicionalizados. (STJ)
  2. Contextualização do histórico probatório: evidenciar contradições pretéritas, arquivamentos ou manifestações ministeriais pela inexistência de justa causa, decisões de absolvição em primeiro grau revertidas monocraticamente, e ausência de vestígios/“provas frias” independentes.
  3. Corroboração externa: sempre que possível, documentos, registros de atendimento psicossocial, comunicações que indiquem motivação alheia (p.ex., disputa patrimonial, vingança, influência de terceiros), periciais que enfraqueçam a versão acusatória.
  4. Resguardo da vítima: a retratação não pode ser fruto de coação ou constrangimento; é crucial blindar o ato de qualquer vício, inclusive com acompanhamento técnico e eventual apoio psicossocial. Qualquer mácula pode inutilizar a prova.
  5. Teoria do caso na revisão: em vez de “reviver” todo o processo, o foco deve ser: (a) onde a condenação se sustenta; (b) o que a prova nova derruba; (c) por que, diante disso, a dúvida é inevitável — e, portanto, a absolvição é imperativa.

8) “Dúvida razoável” e padrão probatório: o que exatamente a maioria reconheceu

A decisão sinaliza que, em revisão e diante de prova nova idônea, não se exige que o tribunal reconstrua fato por fato para alcançar certeza positiva da inocência. O que se cobrará é se a condenação ainda se sustenta sem incorrer em erro judiciário. Havendo duvidabilidade séria — sobretudo quando o único pilar era depoimento e este se retrata com lastro — o sistema prefere a liberdade.

Esse racional encontra eco em textos do STJ sobre revisão criminal e em informativos que tangenciam a temática, inclusive destacando a adequação da justificação como meio hábil a viabilizar a prova nova. (STJ)


9) Relações com outros precedentes recentes: entre relativizações e reafirmações no campo sexual

O noticiário jurídico de 2024–2025 mostra um tabuleiro heterogêneo:

  • Há decisões que reafirmam com força a proteção penal em estupro de vulnerável, inclusive dizendo que consentimento ou relacionamento não são relevantes para o 217-A — reforçando a Súmula 593.
  • Há outras que, em contextos muito particulares, relativizam automaticamente a presunção, inspiradas por fatores como pequena diferença de idade, vida afetiva prévia e existência de filhos — pauta que vem gerando críticas internas e externas, inclusive da CIDH, por potencial enfraquecimento da tutela infantojuvenil. (Gazeta do Povo)

Já o caso aqui tratado não discute idade de consentimento nem relativiza a Súmula 593; discute, sim, padrão probatório e revisão por prova nova (retratações), quando a condenação estava ancorada essencialmente na palavra das vítimas e quando contradições e arquivamentos já estavam lançados. Em outras palavras: trata-se menos de “afrouxar” a tutela e mais de evitar que condenações se sustentem sobre alicerces instáveis quando surge elemento superveniente de alto impacto.


10) Implicações práticas para casos em curso e para ações já transitadas

Para processos em curso, a defesa deve:

  • Mapear desde cedo incongruências e lacunas dos depoimentos;
  • Buscar indícios objetivos de motivação extraprocessual (vantagem econômica, disputas pessoais, instrumentalização política);
  • Preservar teses probatórias para uso futuro em eventual revisão, caso sobrevenha prova nova.

Para condenações transitadas, a decisão recomenda:

  • Reexaminar a viabilidade de retratação em justificação, quando verossímil e eticamente adequada;
  • Evitar iniciativas precipitadas: retratação forçada ou mal instruída pode agravar a situação;
  • Alinhar a narrativa revisional com o histórico do caso, demonstrando materialidade da dúvida.

Para o Ministério Público e magistratura, a mensagem é dupla:

  1. Cautela com condenações exclusivamente ancoradas em depoimentos sem corroboração mínima, principalmente quando há contradições relevantes;
  2. Cautela também com retratações: exigir forma, coerência interna, ausência de vício e, no possível, corroboração externa.

11) Pontos sensíveis: não transformar revisão em “porta giratória”

Crimes sexuais envolvem vulnerabilidades reais e complexidades humanas. O sistema não pode:

  • Desacreditar a palavra da vítima por padrão;
  • Tolerar manobras de intimidação ou compra de silêncio;
  • Normalizar retratações viciadas.

Daí a relevância de procedimentalizar a prova nova (justificação), registrar a inexistência de coação, e exigir mínimo de consistência lógica. Essa é a barreira que separa a revisão responsável da instabilidade generalizada. (STJ)


12) “Lições” do caso para a advocacia criminal na seara sexual

  1. Construção de caso: pensar a revisão desde a origem. Guardar linhas de tempo, incoerências e pistas de motivação externa.
  2. Perícia e documentação: onde couber, acionar perícias (psicossociais, tecnológicas) e documentos que falem por fora dos depoimentos.
  3. Ética e técnica: nunca orientar retratação falsa. A única retratação útil é a verdadeira, espontânea e formalmente hígida.
  4. Narrativa probatória: montar um memorial que demonstre por que a condenação não sobrevive à nova prova sem incorrer em error in judicando.
  5. Jurisprudência de apoio: juntar materiais institucionais do STJ sobre revisão, informativos e repertórios que reconhecem a retratação como prova nova em tese, quando o acervo for exclusivo de palavra e sem corroboração. (STJ)

13) Conclusão: nem romantização da retratação, nem fetichização da condenação

O julgamento por 5×4 não inaugura uma era de “vale-tudo” de retratações. Tampouco consagra ceticismo absoluto com vítimas de crimes sexuais. O que ele reitera é uma premissa constitucional do processo penal: ninguém pode permanecer condenado quando sobrevier prova nova que instale uma dúvida razoável insuperável à luz do acervo global.

A decisão, ao mesmo tempo em que prestigia a segurança jurídica (exigindo forma adequada e teste de consistência da prova nova), protege a legitimidade do sistema: condenações devem ser estáveis, sim — mas somente quando estão certas. Onde houver sombra de erro revelada por prova superveniente idônea, a revisão é remédio e a absolvição, um dever. É o que fez a 3ª Seção.

Para a advocacia criminal, fica o recado: técnica, ética, lastro e forma. Retratações bem colhidas, contextualizadas e robustecidas podem ser decisivas; retratações apressadas e mal instruídas não sobrevivem. Entre esses extremos, mora a diferença entre uma revisão exitosa e uma tese inviável.

Para o acusado, a melhor alternativa é contar com a atuação de um advogado especialista em crime sexual, profissional preparado para analisar provas, apontar contradições, requerer perícias e assegurar que o processo seja conduzido com equilíbrio.

A justiça só será verdadeiramente justa quando punir os culpados com rigor, mas também preservar os inocentes de condenações injustas. O equilíbrio entre proteção da vítima e garantias individuais é o que legitima a atuação do Direito Penal em uma sociedade democrática.


FAQ – Revisão criminal e retratações em crimes sexuais

1. O que é revisão criminal e quando pode ser utilizada?
É um instrumento previsto no art. 621 do CPP que permite rever condenações já transitadas em julgado quando há erro na aplicação da lei, contrariedade às provas dos autos ou surgimento de nova prova de inocência.

2. A retratação da vítima pode ser considerada prova nova?
Sim. Quando formalizada de forma adequada, especialmente por meio de justificação judicial, a retratação pode ser admitida como prova nova capaz de instaurar dúvida razoável sobre a condenação.

3. A palavra da vítima sempre é suficiente para condenar?
Não necessariamente. Embora tenha grande relevância, deve ser coerente, verossímil e, sempre que possível, corroborada por outros elementos probatórios.

4. Qual foi a importância da dúvida razoável no julgamento do STJ?
A maioria dos ministros entendeu que, diante das contradições históricas e das retratações, a dúvida razoável era suficiente para afastar a condenação, privilegiando a liberdade do réu.

5. Qual a diferença entre revisão criminal e recurso comum?
O recurso comum busca reformar decisão ainda não definitiva. Já a revisão criminal ataca uma decisão já transitada em julgado, funcionando como remédio excepcional para corrigir possíveis injustiças.

6. Por que a maioria dos ministros aceitou a retratação como suficiente?
Porque além das retratações, já existiam inconsistências e arquivamentos anteriores, o que fragilizava a prova original. A nova prova apenas reforçou a dúvida já existente.

7. O que disse o voto vencido sobre os riscos da retratação?
O ministro Schietti ressaltou que retratações logo após o trânsito em julgado precisam ser vistas com cautela, pois podem gerar instabilidade e abrir espaço para manipulações.

8. Como a defesa deve tratar a retratação para ter força revisional?
Deve apresentar a retratação por meio de procedimento formal, sem indícios de coação, acompanhada de outros elementos que reforcem sua credibilidade.

9. O que significa dizer que a revisão não é uma “terceira instância”?
Significa que não serve para reavaliar o mérito como um recurso normal, mas apenas para corrigir situações excepcionais previstas em lei, como erro de julgamento ou prova nova.

10. Quais lições o caso traz para a advocacia criminal?
Que retratações podem ser decisivas quando bem instruídas, mas só terão valor se forem verdadeiras, espontâneas e formalizadas em procedimentos com contraditório e segurança jurídica.