Estupro de vulnerável – violência presumida: análise jurídica completa
É possível a desclassificação do crime de estupro para o crime de importunação sexual? O crime de estupro de vulnerável ocupa lugar central na legislação penal brasileira, refletindo uma das maiores preocupações do Estado contemporâneo: a proteção integral de crianças e adolescentes contra a exploração sexual. O artigo 217-A do Código Penal, introduzido pela Lei nº 12.015/2009, tipifica como crime a conjunção carnal ou a prática de outro ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos, fixando pena de reclusão de 8 a 15 anos. A redação da norma elimina qualquer possibilidade de relevância do consentimento da vítima, estabelecendo presunção absoluta de vulnerabilidade. Esse dispositivo, além de criar uma barreira objetiva contra o abuso infantil, também gera intensos debates na doutrina e na jurisprudência, sobretudo diante de casos complexos em que há alegação de consentimento, namoro ou maturidade precoce do ofendido.
1. Jurisprudência consolidada: a impossibilidade de desclassificação
Em maio de 2024, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) reafirmou, em jurisprudência consolidada, que não cabe desclassificação do crime de estupro de vulnerável para importunação sexual. O fundamento repousa na natureza absoluta da presunção de violência: qualquer ato libidinoso praticado com menor de 14 anos é considerado estupro de vulnerável, sem margem para relativizações. O Tema 1.121 do STJ fixou essa tese como orientação vinculante, impedindo defesas que sustentem adequação típica mais branda.
O STJ já decidiu, por exemplo, que não há distinção entre a prática de conjunção carnal e de outros atos libidinosos, todos subsumidos ao art. 217-A. Em outro julgado, o tribunal reafirmou que o consentimento da vítima, seu suposto desenvolvimento físico ou a existência de relacionamento amoroso com o acusado são irrelevantes para a configuração do delito. O STF, em sede de habeas corpus, acompanhou a mesma linha, entendendo que admitir relativizações abriria caminho para insegurança jurídica e comprometeria a proteção constitucional da infância.
Esse posicionamento fortalece o caráter protetivo da norma e reforça o objetivo de blindar menores de 14 anos de qualquer forma de exploração sexual, mesmo que mascarada sob a aparência de relacionamento consensual.
Segue notícia na íntegra,
Estupro de vulnerável – desclassificação para o crime de importunação sexual – Tema Repetitivo 1121 do STJ
Caracterizado o dolo específico de satisfazer a lascívia, a prática de ato libidinoso com menor de quatorze anos configura o crime de estupro de vulnerável, ainda que a conduta se revele ligeira e ou superficial, entendimento que afasta, portanto, a possibilidade de desclassificação para o delito de importunação sexual. O Ministério Público denunciou um pai pela prática de estupro de vulnerável ( art. 217-A, c/c art. 226, II, do Código Penal) perpetrado contra sua filha de onze anos. O juízo singular, ao verificar a autoria e a materialidade do abuso sexual, condenou o acusado à pena de quatorze anos de reclusão, em regime inicial fechado, e ao pagamento de dois mil reais à vítima, a título de danos morais. Irresignados, o MP e o réu interpuseram apelação. Na análise dos recursos, os desembargadores asseveraram que a palavra da vítima ostenta especial valor probatório nos crimes sexuais, uma vez que infrações dessa natureza são, geralmente, cometidas de forma clandestina, sem testemunhas e sem vestígios. Nesse sentido, destacaram que não apenas a narrativa da ofendida tem relevância substancial para a elucidação do fato, mas também o contexto, os depoimentos prestados por pessoas próximas e os sintomas de estresse pós-traumático apresentados pela vítima – elementos suficientes para estabelecer a autoria e a materialidade. Em relação à tese defensiva de desclassificação da conduta para o delito de importunação sexual ( art. 215-A do CP), os magistrados rechaçaram o argumento, ao destacar entendimento do Superior Tribunal de Justiça (Tema Repetitivo 1121), o qual preceitua que, presente o dolo específico de satisfação da lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de quatorze anos configura estupro de vulnerável, independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta. Nessa linha, a turma ponderou que o crime imputado se dá com a prática de atos libidinosos, sendo desnecessária a consumação da conjunção carnal para a configuração do estupro, análise que afasta a alegação de tentativa. Dessa forma, por considerar escorreita a pena imposta, mormente no que se refere à reparação pelos danos morais, o colegiado negou provimento aos recursos, para manter íntegra a condenação. Acórdão 1856001, 07038068920218070003, Relator: Des. WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR, Terceira Turma Criminal, data de julgamento: 2/5/2024, publicado no PJe: 20/5/2024.
2. Estrutura típica do artigo 217-A
O tipo penal apresenta duas condutas nucleares:
O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, independentemente de gênero, idade ou condição. Já o sujeito passivo é sempre a vítima menor de 14 anos. O crime consuma-se com a prática do ato libidinoso; a tentativa ocorre quando iniciada a execução, mas impedida por circunstâncias alheias à vontade do agente.
A objetividade da norma tem caráter pedagógico: deixa claro que qualquer prática sexual com menores de 14 anos é juridicamente inadmissível, eliminando espaços de dúvida.
3. A presunção absoluta de vulnerabilidade
O ponto central é a presunção absoluta de vulnerabilidade. A lei não permite investigação subjetiva sobre a maturidade da vítima, tampouco se houve consentimento. Esse posicionamento decorre da opção legislativa por proteger integralmente a infância, em consonância com o art. 227 da Constituição Federal e com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Doutrinadores como Fernando Capez defendem que a irrelevância do consentimento evita brechas interpretativas que poderiam legitimar relações abusivas sob disfarce de namoro ou maturidade precoce. Cezar Roberto Bitencourt aponta que a norma busca proteger a formação sexual do menor, independentemente de sua vivência individual. Já Rogério Greco observa que a regra cumpre função simbólica e pedagógica, reforçando o repúdio social a qualquer exploração sexual infantil.
A jurisprudência é uníssona: não cabe relativização. O STJ já rechaçou diversas tentativas de invocar o “namoro consentido” como causa de exclusão de tipicidade, reafirmando a natureza absoluta da vulnerabilidade.
4. Penas e causas de aumento
A pena prevista é de 8 a 15 anos de reclusão. Contudo, ela pode ser agravada em diversas hipóteses:
Essas disposições evidenciam a gravidade atribuída pelo legislador ao delito, que é tratado como uma das infrações mais severas do ordenamento penal.
5. Inaplicabilidade de institutos despenalizadores
O crime de estupro de vulnerável está fora do alcance de institutos despenalizadores.
Dessa forma, a legislação fecha as portas para soluções consensuais, impondo a persecução penal obrigatória e reforçando a rigidez do tratamento.
6. Aspectos processuais relevantes
A investigação e o processo em crimes de estupro de vulnerável possuem peculiaridades próprias.
Esses aspectos demonstram a complexidade probatória do crime e a necessidade de defesa técnica atenta.
7. Doutrina crítica e divergências interpretativas
Embora a doutrina majoritária apoie a rigidez da lei, há vozes críticas.
Esses posicionamentos revelam que, embora haja consenso quanto à proteção, a crítica se volta ao risco de fragilidade probatória.
8. Falsas acusações: impacto social e jurídico
Embora minoritárias, falsas acusações existem, especialmente em disputas de guarda. Estudos apontam que entre 7% e 10% das denúncias podem ser infundadas nesses contextos.
As consequências para o acusado são devastadoras: perda de emprego, ruptura de laços familiares, destruição de reputação e estigmatização social irreversível. Mesmo após absolvição, muitas vezes a vida da pessoa não retorna ao normal.
Por outro lado, a subnotificação de abusos é uma realidade: estima-se que apenas uma pequena fração das vítimas denuncia. Isso revela a difícil balança entre proteger as crianças e evitar injustiças contra inocentes.
9. Reflexões sociais e psicológicas
O estupro de vulnerável gera repulsa coletiva. A opinião pública costuma exigir penas exemplares, pressionando o Judiciário. Contudo, julgamentos devem se basear em provas técnicas e imparciais, não no clamor popular.
As vítimas sofrem graves consequências psicológicas, como traumas, depressão, ansiedade e dificuldades de relacionamento. Já os acusados inocentes enfrentam estigmas quase impossíveis de superar. Nesse cenário, a defesa técnica é indispensável para garantir a justiça.
10. Comparações internacionais
No cenário internacional, a idade de consentimento sexual varia:
O Brasil, ao adotar 14 anos, alinha-se a diversos países, mas mantém presunção absoluta, o que o diferencia de sistemas que permitem análise subjetiva.
11. A importância da defesa especializada
A defesa em casos de estupro de vulnerável exige profundo conhecimento jurídico e técnico. É necessário:
A atuação de um advogado especialista em estupro de vulnerável é essencial para assegurar equilíbrio entre a proteção da infância e os direitos fundamentais do acusado.
12. Considerações finais
O crime de estupro de vulnerável é tratado com máxima severidade pela legislação penal brasileira. O precedente do TJDFT, alinhado ao STJ, reforça a impossibilidade de desclassificação e a irrelevância do consentimento. Contudo, a rigidez da lei exige redobrada cautela na produção da prova, para evitar condenações injustas.
A justiça só será legítima quando punir culpados com firmeza e proteger inocentes com a mesma intensidade. Para isso, é indispensável contar com defesa técnica qualificada, capaz de enfrentar as complexidades do processo penal e garantir que os princípios constitucionais sejam respeitados.